domingo, 5 de setembro de 2010

Cassirer – o poeta de Davos.


Como diz Cassirer na introdução do seu belíssimo ensaio: O mundo humano do espaço e do tempo, “o espaço e o tempo são a estrutura em que toda a realidade está contida.”

Com efeito, onde situar então o poeta , esse ser com infinitos apodos? É-se poeta quando querem achincalhar; é-se poeta quando querem destituir toda e qualquer argumentação filosófica; é-se poeta quando querem, de forma sub-reptícia, alijar de toda e qualquer escola ou confraria, na qual são estimulados e desenvolvidos - até quase o seu esgotamento, todos os argumentos físicos e metafísicos.

É de se supor que ao poeta cabe então o espanto ao se deparar com conceitos estranhos à sua arte.

O poeta, de repente, entra numa aporia. O poeta mal sabe, mas já está fazendo filosofia, na pura acepção da palavra. Ele que é destituído de toda racionalidade. Passa então a ser um puro fato, uma facticidade. O poeta e a sua derrelição.
Nesse sentido, onde a possibilidade do real do poeta, se já não tem nem mesmo no mundo fenomenológico condições de conceber o seu espaço e tempo?

Será por que o poeta com a sua largueza excede as medidas e as limitações espaciais e temporais? Por isso considerado por quase todos como um nefelibata que nada resolve?

Será por que, como Cassirrer situa no texto sobre as crianças, tem de aprender ainda “muitos talentos.” De modo que o poeta seria, por conseguinte, uma mera criança no universo filosófico, caber-lhe-iam apenas os jogos de devaneio.

Devaneio não no sentido de delírio, mas sim no seu sentido mais literal, pensar nas coisas vãs. Ao poeta não cabe pensar no universal. Seria pura tautologia; um jogo de metáforas, catacreses, metonímias, oximoros.

Como um Proteu, lhe cabe a transfiguração, a prestidigitação. Por isso o poeta, muitas vezes, comparado ao gato, melindroso felino. Mas o gato não é constituído de palavras. Ao gato não cabe a nomeação. Gato não aspira a ser um demiurgo e muito menos os que levam a chalaça de poeta. Não é o poeta que se intitula poeta; antes muito pelo contrário.

Raras são as vezes em que isso ocorre, e quando ocorre, creiam ou creia, não passa de lídimo cabotinismo, lídimo narcisismo mal resolvido. Onde então a linha tênue entre poeta e filósofo; filósofo e poeta? Não seria também o filósofo um meio fio? Para os poetas não passa de um cientista; para os cientistas não passa de um poeta fracassado.

E lá vai o filósofo trabalhar as suas antinomias.

Platão, na certa, o salvou: “uma lei estabelece que no primeiro nascimento, a alma não entra no corpo de um animal; aquela que mais contemplou gerará um filósofo.” Muitos deturpam e desconsideram o filósofo, como deturpam e desconsideram os poetas.

Platão, em Fedro, dizia dos poetas, referindo-se aos graus ou cânones: “a do sexto terá a existência de um poeta ou qualquer outro produtor de imitações.”- e Platão vai além: “nenhum poeta ainda cantou nem cantará a região que se situa acima dos céus.”

Resta ao poeta então o chão, mas onde pousar as suas asas aladas, as suas asas de gigante nos versos de Baudelaire. Um albatroz é desengonçado, chega mesmo a ser ridículo.


Mas se pergunta: quem cantará? Quem poderá melhor falar dos universais do que um ser universal? Poderiam responder que Nietzsche, pois estudado na cátedra como filósofo respeitado por muitos; mas Nietzsche já dava a sua réplica em Ecce Homo: “Deus”, “imortalidade da alma”, ‘redenção”, “além”, todos esses são conceitos que nunca levei em conta; nunca com eles sacrifiquei o meu tempo, nem mesmo em criança.”

Será que Nietzsche comparava os filósofos às crianças? Se assim for, o poeta não estaria isolado. E lá vem Nietzsche de novo: “nem mesmo em criança; talvez nunca fosse bastante ingênuo para fazê-lo.” Assim o poeta e o filósofo numa aporia absoluta se confundem.

Em Davos, Suíça, em 1929, por ocasião dos encontros universitários ocorridos naquele país, o filósofo judeu, Ernst Cassirer, foi vítima das lancinantes palavras de Heidegger que defendia a “necessidade de uma destruição daquilo que foi até agora o fundamento da metafísica ocidental ( o Espírito, o Logos, a Razão)”. Naquela ciclópica luta, quem o filósofo; quem o poeta? Quem o dono da verdade? Seria essa violência já um estofo de um espírito maior? Mesmo os mais sagazes filósofos, atribuem-se de ferramentas poéticas.

A metáfora, não inconsequentemente, torna-se um baldrame bem seguro nas mãos dos filósofos. Às vezes para se falar de Estado, fala-se de Espírito. Mas como, se o que não se pode dizer deve-se calar? Mas e as metáforas dos poetas? Por que não falar como se deve? Por que o discurso que se faz por meandros? Por que o discurso que serpenteia nas encostas da dissimulação, fazendo, assim, tropeçar nos tropos? Para instaurar.... um sistema...ou qualquer coisa que o valha.

Já o poeta fala por metáforas, porque pretende recriar um mundo que não lhe cabe. Nesse sentido o poeta torna-se o antípoda do filósofo, pois já carrega o espírito destruído.

Caímos novamente na filosofia: Qual espírito?

O poeta não quer fazer um mundo. O poeta não cabe, mas também não quer caber. O poeta é pura contingência. Ele está aí no mundo. Dasein? Também não! Ele habita um mundo inóspito.

Há muitos que opõem o poeta à ciência. Chega a ser excludente tal relação. O poeta não é inimigo da ciência. O poeta se pergunta, tal como o filósofo. A diferença é que o poeta responde, ou tenta responder, mesmo que errado. Dizer que o poeta não pergunta sobre os universais, seria como dizer uma falácia.
Dizer também que a poesia nada resolve, como se a ciência viesse dar conta de tudo, é outro erro crasso.

Falar em juízos sintéticos a priori como se fossem a panacéia é uma quimera. Parece que todos correm tresloucadamente no intuito de descobrir o primeiro juízo sintético a priori.
Sabe-se que na literatura, James Joyce, autor irlandês, que escreveu Ulisses, dizia que deixaria os pósteros enlouquecidos e parece que Kant, antes, o mesmo fez também

Kant, com a sua benevolência e com a sua revolução copernicana, quis dar uma sobrevida à metafísica, afirmando, na Crítica da Razão Pura, que a matemática ou a física é a que lhe daria uma última dose de alento, assim como se aviam remédios de tarja preta a doentes terminais.

E aí todos a correr em busca dos cálculos exponenciais e excepcionais. Muito se afirma aqui e acolá da universalidade da matemática e da sua não contradição, dos axiomas perfeitos. Como se se pudesse falar daquilo de que não se conhece. Desolado e deprimido, o poeta põe a cabeça entre os joelhos, ergue as mãos para os céus e invoca Deus. E por qual Deus? Nada de filosofia ao poeta. Esse Deus, que ele próprio concebeu para si, lhe basta, sem maiores elucubrações. Deixa de ser filósofo. Aliás, nunca o fora.

Kant na sua sobeja experiência não se furtava entretanto de dar à arte um último suspiro e, de uma forma ou de outra, lhe dava também uma certa dignidade. Kant além de gênio era astuto, ludibriou os exatos, para que o zéfiro soprasse livremente.

Kant talvez tenha percebido que o poeta fora o primeiro a priori, algo que não se dá como experiência; mas o poeta é um axioma contraditório; o poeta chega a ser mesmo uma inconsistência - seria como uma tal multiplicação: [1 X 0 = 0] que nada resolve - seria equiparado àquele matemático, quando afirma que [ 0 X 1 =0 ]; outra inconsistência.

Ambos, nesse sentido, dois poetas. O poeta e o matemático: o poeta das metáforas; o matemático; poeta dos números anódinos que só dão conta do real, dessas coisas comezinhas: duas pêras mais duas pêras são quatro pêras, sem atentar para o fato de um mundo de não-pêras.

Por isso tautologias em cima de tautologias. Por isso esses banquetes do saber. Por isso essas ágapes filosóficas, seja em Davos, onde também esteve Hans Castorp.
Ao menos, Hans Castorp tentava se curar de sua maladia mais real, mas curvou-se à doença filosófica, relegando seus pulmões a um segundo plano. Seus brônquios aspiraram um oxigênio puro, é verdade. Aspirou também um pouco do sutil filosofar de Naphta “que não tinha fé na ciência – visto o homem ter plena liberdade de crer nela....a própria palavra “ciência” era a expressão do mais estúpido realismo que não se envergonhava de aceitar e gastar como moeda sonante os reflexos mais que duvidosos que os objetos sofriam do intelecto humano, e de preparar com eles a mais lamentável e a mais insossa doutrina que já se impingiu à humanidade.”

Com efeito, qualquer pessoa que soubesse pensar logicamente seria levada a experiências curiosas e a resultados divertidos com esse dogma do espaço infinitos reais; obteria precisamente o resultado: “nada.”

Será que seriam todos: poetas, filósofos e quejandos dotados de certas doenças. E se descobríssemos o primeiro motor aristotélico?

Para o poeta verdadeiro isso nada significaria - porque “o maior perigo de quem escreve é fazer da pena ou pensamento um ídolo. Ou um título. Quando nos devíamos até envergonhar de ser homens de letras, tal o peso dos venenos morais e outros que elas carregam consigo por nossa culpa.”

Mas há poetas que filosofam? Talvez: “uma vez senhor Pi saiu por uma tangente de sua sólida casa redonda e penetrou no futuro antes que os demais. Pálido retornou e exclamou: “Estive no futuro.” E como é?, lhe perguntaram. “Não sei, o futuro é escuro. Não se vê nada porque o sol não sai no futuro, os relógios não marcam todavia a hora e, mesmo se a marcassem, nada se veria porque tudo é terrível como a noite. Não vi nada no futuro e me assustei.” Desde então, o senhor Pi limitou as suas saídas ao estritamente indispensável, sempre dentro de seu raio, e nunca mais saiu de casa sem antes consultar seu horóscopo.”

Muito se fala de : “esse é um esquema.” “Deus está morto.” “As estrelas no céu.” “Conhecimento puro conduz a juízos universais e necessários.” “7 + 5 = 12.” “Duas linhas paralelas jamais se encontram no espaço.” “Absoluto de: Descartes; Kant; Hegel; Bergson.”


E aí vem H.L Mencken, um irônico safardana apunhalando: ”um metafísico é alguém que, quando você lhe diz que dois vezes dois são quatro, ele quer saber o que você entende por “vezes”, o que significa “dois”, e o que quer dizer “são” e por que isto dá quatro. Por fazerem tais perguntas, os metafísicos desfrutam um luxo oriental nas universidades e são respeitados como homens educados e inteligentes.” Mas Schopenhauer já avisava:” o verdadeiro filósofo deverá suportar as intrigas tecidas pela inveja.” Motivo para se ficar com os filósofos.

Agora poesia não tem só o belo. O poeta não é uma ânfora de cristal. Não é algo quebrantável de porcelana. Um poeta é um ser que pensa na sua finitude; não é também um mimético. Larguemos mãos de nos apoiar em colunas porque foram colunas. Todos os ensaios falam de um poeta, aquilo que ele efetivamente não é e pronto. Quem quiser acreditar que acredite. O monturo estaria cheio a esta hora de ensaios maravilhosos. Estiagem em plena primavera. Um dos problemas cruciais do poeta é a morte.
Bem entendido, a sua morte. O poeta pensa para dentro. Poeta não pensa para fora. É apenas um simulacro. Não obstante Galileu, o poeta não deixou de ser o centro de seu universo. A revolução copernicana não se deu com o poeta. Para o poeta o futuro dura muito tempo; ou “o futuro cansa e põe de mau humor.
Dá gana de fumar. Como o cigarro, o futuro também é anacrônico e prejudicial à saúde.”

Dessa maneira, poderíamos falar como Cassirer “a poesia é uma forma pela qual um homem pode passar veredicto sobre si mesmo e sua vida”, pode até se dizer que dá para falar de universalidade quando Cassirer afirma: “mas a poesia não é a única forma, e talvez não seja a mais característica, de memória simbólica” e vai mais longe: “Agostinho não relata os eventos de sua própria vida, que para ele mal valiam a pena ser lembrados ou registrados. O drama contado por Agostinho é o drama religioso da humanidade.

Sua própria conversão não é mais que a repetição e o reflexo do processo religioso universal – da queda e da redenção do homem.”

Pode-se ainda dizer que quando ri do poeta, a humanidade está rindo da sua própria queda. O que nos leva a compreender por que “o público de Davos – entre o qual se encontravam Jean Cavaillès, Emmanuel Lévinas, Maurice de Gandillac – não deixaria de sensibilizar-se com a violência contida nos ataques de Heidegger contra o seu colega Cassirer – a quem, no momento da partida, ele recusará estender a mão.”



Quando se ataca a poesia, mesmo na figura de filósofos eminentes, já é tempo de se colocar sob alerta. O poeta jamais deixará de ser o farol do mundo. Com Cassirer, em Davos, a filosofia não seria mais a mesma. Cassirer como filósofo saiu derrotado, mas os perjuros lhe lançaram as chamas da poesia. Cassirer se tornou assim o mais recente albatroz da filosofia contemporânea. Nem sempre para se ser poeta é necessária a feitura de versos, às vezes, uma simples ofensa lhe basta. Pode-se concluir então que de Davos puderam-se instaurar um novo olhar e uma nova possibilidade da filosofia contemporânea. Dos inúmeros embates das alturas , às vezes, é mais fácil rir da seta no ar e coxear como o enfermo alado.


Albatroz

Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.
WILSON LUQUES COSTA
2002/SÉCULO XXI
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

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Quem sou eu

Nascido na cidade de São Paulo em 15 de fevereiro de 1960. Formado em Jornalismo (UMC/1983). Professor titular do ensino médio da disciplina de filosofia. Pós-Graduado, em nível de Especialização, em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pelo Instituto de Psicologia (USP /2001). Entre os anos de 1999 a 2005, fez extensão universitária dos instrumentais de grego, latim e alemão, cursando também mestrado (sem concluir) em educação e filosofia. Autor de dois livros na literatura, do Ensaio Paradoxo do Zero (Fundação Biblioteca Nacional/2003) e do conceito filosófico O Princípio da Identidade Negativa. É verbete nos livros O Céu Aberto na Terra, Sobre Caminhantes, A vocação Nacional da UBE: 62 ANOS, Revista de arte e literatura Coyote.